E agora José? / O que será de todos nós após o segundo ano pandêmico? / Passaremos de uma sociedade de risco mundial para uma sociedade de resiliência

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Após ter escrito, e registrado, inúmeras palestras acerca das consequências do Coronavírus, e das medidas restritivo-comportamentais adotadas visando a contenção do número de casos e de óbitos da Covid-19, no Brasil e no mundo, percebo, hoje, o desafio de refletir sobre a questão do que ocorrerá no mundo pós-pandêmico. Sem ter a necessidade de fazer qualquer longo discurso, ou de discorrer muito sobre este tema, afirmo-lhes que “achatar a curva da saúde mental será o próximo grande desafio pós-pandemia da Covid-19”.

         Como todos aprendemos ao longo dos dois últimos anos, emergências de saúde pública do porte da Covid-19 podem afetar a saúde, a segurança e o bem estar tanto de indivíduos quanto de comunidades. O que ela provocou? Do ponto de vista individual: insegurança, confusão, isolamento emocional e estigmatizações diversas. Do ponto de vista coletivo: perda econômica, desemprego, fechamento de escolas, sobrecarga do sistema de saúde e até falta de equipamentos protetores e de kits para entubações e afins. Em comum entre esses pontos? O acirramento das desigualdades econômico-sociais em países já terrivelmente desiguais, tal como o Brasil.

Tais efeitos, traduzidos numa variada amplitude de reações emocionais, como pelo estresse e por condições psiquiátricas diversas, além de comportamentos não saudáveis (do tipo abuso de álcool e de drogas ilícitas) e da não aderência às diretrizes de saúde pública (do tipo recusa de confinamento por parte dos que contraem a doença e por parte da população em geral), impactaram o mundo intensa e psicologicamente, e de forma tão duradoura, que já é o maior impacto evidenciado em ambientes físico e hospitalar nos últimos 100 anos, após a gripe espanhola, motivo pelo qual acreditamos que a próxima década venha a ser totalmente dedicada à saúde mental.

         Mas, ficaremos nisso? Por certo, não. Muitas outras sequelas psicológicas também poderão emergir, seja da própria Covid-19, seja das estratégias utilizadas para mitigar sua propagação. Exemplos disso? Elevação do medo e da depressão, bem como, da ansiedade, irritabilidade, agressividade, insônia, apatia, pânico e outras, associados ou não ao lockdown. Em suma? A pandemia da Covid-19 engendrar alarmantes implicações para a saúde individual e coletiva, além do funcionamento social, emocional e cognitivo. Urge, portanto, que todos nós estejamos juntos para enfrentar esse novo desafio que, de imediato, já nos requer ações de combate.

         De fato, parece que estamos vivendo, de forma intensificada, numa sociedade de risco mundial. Ao longo da pandemia, três palavras parecem ter grassado o mundo: crise, caos e confusão. E tudo isso causado por um inimigo invisível a olho nu, que tem colocado o mundo praticamente de joelhos, fazendo-o adentrar à maior crise de nossas gerações. Não bastando o elevadíssimo número de casos, mortes e infectados, também os sistemas hospitalares foram praticamente destruídos, ocasionando que as economias de quase todo o planeta vivenciassem seu produto interno bruto entrar em colapso. O mundo não meramente entrou em crise, devido ao Coronavírus, mas, principalmente, devido a um inimigo muito maior: nós mesmos. Se a Covid-19 é a primeira pandemia, esta é a segunda: as percepções políticas e psicológicas, com as respostas aos riscos e incertezas acarretadas pela mesma.

         Frequentemente, o impacto psicológico é considerado mais extensivo e duradouro do que os efeitos somáticos ocasionados pela pandemia. Como a literatura científica mundial tem registrado, muitas pessoas podem morrer mais do confinamento físico e social a que são submetidas do que, propriamente, da Covid-19, devido ao estresse psicológico, bem como, à falta de exercício físico e de conexões sociais, além de necessitarem postergar consultas e procedimentos médicos não relacionados à Covid-19. Outros dados também têm mostrado que o ano de 2020 registrou, aproximadamente, mais de 300 mil suicídios adicionais no mundo devido à quarentena e às crises econômicas subsequentes. Com isso, a pandemia psicológica também parece ter feito com que alguns indivíduos buscassem esconder seus medos atrás das cortinas fechadas de seus confinamentos pessoais e profissionais, impostos ou não por governos. Por sua vez, também outros, refletindo seus medos ao longo da trajetória pandêmica, colhem frutos não menos amargos que esses.

         Como um paciente anônimo, de um livro que li, nós estamos, todos, num oeste selvagem.

         A primeira pandemia, a da Covid-19, trata dos riscos epidemiológicos e biomédicos. Parece-nos, de forma otimista, que seu padrão de risco está se reduzindo em função tanto das medidas de proteção adotadas quanto da ampliação da vacinação no quadro brasileiro e mundial. Riscos desse porte se relacionam à possibilidade de transmissão do Coronavírus pelas pessoas, gerando sintomas nos contaminados e possibilidade de morte dos mesmos. Esses são riscos, não fatos.

         A segunda pandemia, a das percepções políticas e psicológicas, envolve um mundo de incertezas que iremos certamente vivenciar como consequência de vivermos numa sociedade que ainda não adquiriu conhecimento científico suficiente para lidar com as incertezas com que tais riscos ainda persistirão no futuro.

         Em outras palavras, nós ainda não conhecemos as respostas conclusivas e as soluções definitivas sobre o assunto, tampouco como lidar com futuras pandemias desse mesmo porte. Ainda não está claro aonde exatamente estamos, bem como, o que está por vir e o que o futuro estará nos trazendo. O cerne da segunda pandemia sendo: “Como as pessoas percebem e respondem às incertezas?”, bem como, “Como as pessoas lidarão com o fato de que não vivemos em comunidades isoladas em pequena escala, onde cada coisa parece pré-determinada, cheia de certeza e hábitos comuns?”. O fato, sim, é que vivemos num mundo amplamente interconectado e cheio de incertezas.

         Entender, portanto, a psicologia da Covid-19 é, a rigor, entender como os indivíduos percebem e respondem as incertezas de uma sociedade de risco mundial. Para isso, cumpre diferenciar as incertezas nos diferentes domínios da vida, identificando, em cada qual, seus próprios atores-chave.

         Entretanto, mudar nossa percepção, e respostas, a uma sociedade de risco mundial significa construir a resiliência para o enfrentamento de futuras pandemias. Sendo resiliência a capacidade para ajustar-se aos desafios de forma flexível, recuperando-se rapidamente da dificuldade, trata-se de habilidade específica para o futuro da humanidade. Mas, como nos movermos de uma sociedade de risco mundial para uma sociedade de resiliência mundial? Parece-me que, quanto mais leio e me convenço disso, a pandemia mais parece ser altamente política. A diferença entre biologia e política parece ter se tornado turva. É neste contexto sócio-político e econômico que os cidadãos desenvolvem suas próprias percepções da pandemia, decidindo qual precaução tomar... quando, e se, alguma estiver disponível.

         Talvez, por isso, muitos estudiosos sintam a pandemia como uma face de Janus, sendo incerto qual delas dominará. Numa face, alguns arguindo como a biopolítica determinará as condições materiais, psicológicas e sociais do empoderamento individual e da democracia e da revolução. Na outra face, outros dizendo que a pandemia motiva as pessoas a refletir, criticar e se insurgir contra governos autoritários. Parece-me, então, no mais profundo do ser humano que sou, que as pessoas estão se distanciando do materialismo para se aproximar de uma abordagem mais auto orientada e funcionalista, em direção a significados de vida mais amplos e sociais. As pessoas, portanto, frutos da pandemia e da época em que estamos vivendo, pondo-se a refletir sobre seus valores de vida e prioridades econômicas, pensando, agregadamente, na necessidade de uma renda básica universal, bem como, de uma distribuição igualitária de bens e de cuidados de saúde gratuitos para todos, com recursos contínuos para pesquisa.

         Por fim, como nós podemos, neste contexto, melhorar a saúde mental? A literatura científica é muito clara: independente do tipo de cliente, e do tipo de ajuda psicológica, o tratamento psicológico e seus correlatos, a curto e a longo prazos, tem trazido substanciais melhoramentos para a maioria dos problemas mentais de ansiedade e depressão. Além disso, seus efeitos nos indivíduos de ansiedade e depressão foram muito maiores do que naqueles que os apresentaram moderados e pequenos. Em linha com a natureza existencial da pandemia, abordagem humanística e existencial para aqueles necessitados de suporte psicológico podem, e devem, ser recomendadas. Não obstante, também é certo que, durante desastres coletivos, como a Covid-19, que acarretou mudanças no processo humano de encarar o enlutamento, as pessoas podem se beneficiar de reconstruir tanto sua percepção do mundo quanto do significado da vida.

Em suma, vejo que, sem favorecer qualquer tipo de manejo psicoterápico, porque aqui os vejo, todos, como importantes, toda forma de terapia que explicitamente interessa às mudanças existenciais da pandemia, ajudando as pessoas vulneráveis a encontrar maneiras de viver uma vida significativa e satisfatória, a despeito das mudanças que dramaticamente ocorreram em prazo tão curto, pode ser particularmente eficiente em todos os indivíduos potencialmente envolvidos com riscos a sua saúde e ameaças existenciais.

 

José Aparecido Da Silva

Professor Titular Sênior da USP-RP


Evento enviado por Renê Abrão Achcar
Fonte: Prof. Dr. José Aparecido da Silva